sábado, 1 de julho de 2017

26 - Festival de Balões da Turma do Campo Grande


Recentemente ouvi falar que o Foto Wada, no Bairro do Ipiranga, em São Paulo, ainda revela fotos a partir de negativos de máquinas fotográficas clássicas. O Foto Wada foi o ponto de encontro de baloeiros nos 80's, quando a atividade não era considerada criminosa. Os apelidados balógrafos, ou fotógrafos especializados em balões, deixavam os negativos à disposição da loja e baloeiros da Grande São Paulo iam até o local, escolhiam as fotografias mais bonitas e saíam com um punhado de cópias em papel dos aerostatos coloridos e iluminados, capturados por lentes especiais dos poucos fotógrafos que dominavam essa arte, naqueles tempos. Os mais conhecidos eram o Baranauskas, o Tati, o Eud e a Marília. O fato é que essas pessoas eram as responsáveis pela divulgação e disseminação de tudo que ocorria nos festivais e nas solturas desses enormes artefatos coloridos. Não conseguíamos tirar boas fotos com nossas amadoras Yashica MD135, MF3 etc, então a presença de um desses balógrafos nesses festivais era certeza de boas fotos do evento dali uma ou duas semanas. Era só aparecer no Foto Wada e escolher aquelas que mais nos agradassem ou que, com alguma sorte, tivessem nos mostrado num cantinho apinhado de gente, ao fundo da imagem. Pessoalmente, eu conhecia apenas o Baranauskas. Do Eud, do Tati ou da Marília, só tinha ouvido falar.

Ano de 1988, aconteceria o segundo Festival de Balões da Turma do Campo Grande, no Clube dos Aliados, no Rio de Janeiro. O de 1987 havia sido um sucesso e eu me planejei para ir no ano seguinte. A predominância de participantes e visitantes era de baloeiros cariocas, mas sempre tinha a chance de um ou outro paulista aparecer por lá. Era o meu caso. Esse cenário tornaria mais difícil que um dos nossos balógrafos estivesse presente no evento e, por conseguinte, que eu encontrasse fotos do festival no Foto Wada, dali uma ou duas semanas. Eu teria que registrar tudo na minha memória e guardar as imagens na lembrança.

O Clube dos Aliados era em um local afastado de Campo Grande, subúrbio carioca, e ficava a uns 50 km da Rodoviária Novo Rio, no centro da capital fluminense. Fomos em quatro amigos e tivemos que pegar dois ou três ônibus coletivos para chegar ao evento. O local era em uma estrada com poucas casas e não havia onde se hospedar nas proximidades. Nosso plano era assistir à soltura dos balões noturnos, que normalmente iam até três ou quatro da madrugada, depois emendar com a soltura dos diurnos, até umas oito da manhã, e em seguida tomar o caminho para casa, numa saga inversa à feita no dia anterior. Não precisa me dizer que isso era um programa de índio. Na verdade, era um programa de uma tribo inteira, mas eu achava legal na época. Era uma aventura para contar para os colegas baloeiros paulistas, que não quiseram participar da empreitada para conhecer e testemunhar o festival mais famoso dos baloeiros cariocas.

Ia tudo bem naquela noite, todos se preparavam para a soltura dos aerostatos multi coloridos com temas variados, geométricos, paisagens, motivos diversos, todos enfeitados com lanterninhas de papel iluminadas com tocos de velas, já que fogos eram proibidos em festivais por segurança, devido à concentração de pessoas. Então o tempo virou, começou a soprar um vento gelado e o céu se encheu de nuvens. Caiu até uma chuva rápida, que fez com que todos se recolhessem para a quadra do clube, para se abrigarem do mau tempo e mesmo para tirarem algumas horinhas de sono até o amanhecer, sempre na esperança de um dia ensolarado e sem vento. O meu programa de índio já estava começando a precisar da FUNAI para administrar, estava tomando volume. Eu não tinha sono e, para todo canto que eu olhava, gente encostada e dormindo com uma facilidade impressionante, facilidade que nunca tive para pegar no sono. Não bastasse não ter fotos da minha aventura no Foto Wada, agora estava arriscado a não ter nem a aventura.

Olhei num canto e havia um pequeno grupo conversando. Umas cinco eu seis pessoas. Fiquei os observando alguns instantes, quando fui convidado a fazer parte da pequena reunião. Eram paulistas e um deles, que conversava com uma mulher, foi muito atencioso e conversamos algumas horas ali sobre... balões, claro! Ah, falamos também da nossa frustração pela noite de tempo ruim. Eu sabia que o Baranauskas não iria para o festival, então perguntei ao rapaz se o Eud estaria no festival. O rapaz respondeu que a Marília estaria. Perguntei "e sobre o Eud?" e ele apenas me confirmou a Marília. E assim, de prosa em prosa, já iam umas duas ou três da manhã. Foi quando o rapaz desembrulhou um pacote e havia um pequeno balão trazido de São Paulo para o festival. Ele iria confeccionar a "antena" da bandeira para ficar tudo pronto para a soltura matinal, caso o tempo melhorasse. Antenas são armações feitas de cana brava, ou flecha de ubá ou simplesmente "pau flechi", como os baloeiros costumavam dizer. A essas armações são fixadas a bandeira e longos cabrestos de barbantes resistentes. A antena mantém a bandeira aberta e faz a conexão dos cabrestos ao balão. Geralmente são como uma armação de pipa, só que longas, podendo chegar a oito ou dez metros. Podem ter variações de formatos, serem triangulares, trançadas. Enfim, cada baloeiro sabia fazer do seu jeito e eram como uma assinatura.
Me ofereci para a confecção da antena, a partir de um maço de flechas de ubá que ela havia trazido de São Paulo. Insisti mais um pouco e ele concordou. Enquanto ele finalizava alguns adereços faltantes em seu pequeno balão eu fui confeccionando a antena sobre a bandeira dobrada. As bandeiras são sempre um mistério, pois são confeccionadas por ampliação de uma imagem e só sabemos se deram certo na hora da soltura, quando se abrem em cores debaixo do enorme balão que as iça ao alto. Ele sempre dava umas espiadelas de canto de olho se eu estava fazendo o trabalho da antena bem feito e, tendo adquirido confiança no que viu, me deixou à vontade e continuou seu trabalho. Os demais foram dormir. Terminei meu artesanato e ele, por fim, ficou contente com a minha "assinatura" e até teceu elogios. Já começava a clarear e eu fui para o campo de solturas. Ao contrário da noite, fazia uma manhã excelente de tempo bom. Antes de sair, confirmei com ele "se ele sabia se o Eud estaria no festival" (risos). Deixei-o lá com seu balão, seus amigos acordaram e eles dariam conta da soltura.

Cheguei no campo, muito maçaricos já sopravam ar quente e diversas formas coloridas sobressaltavam aos olhos. Era bonito de se ver, tal era o colorido e a criatividade. Tinha um pequeno palco onde o Wagner, organizador do festival, fazia a narração da soltura, quando os primeiros balões começavam a deixar o chão para ganhar o céu azul. Ele narrava cada balão, sua composição, o tema, o nome da turma e, como conhecia a maioria dos participantes, o nome do responsável pela turma, quase sempre um amigo seu de longa data. Foi quando anunciou o balão carrapeta amarelo com a bandeira de palhacinho, de seu amigo Eud de São Paulo. Isso me chamou atenção, pois se o Eud estava lá, dali alguns dias eu poderia procurar as fotos do festival em São Paulo. Fiquei olhando para o céu procurando o balão da bandeira do palhacinho, do Eud, quando o encontrei e reparei que sua bandeira era içada pela antena que eu havia confeccionado naquela madrugada.

Poooowta que paaaaaareeeeeo!!! Não é possível que eu tenha pagado um mico desses, perguntado para o próprio Eud se ele estaria no festival. Qual seria a probabilidade daquilo acontecer?!

Fui ao encontro do rapaz e perguntei, a queima roupa: "Você é o Eud?" Ele riu, esticou a mão e respondeu: "Muito prazer, Eud!" Em seguida, me tranquilizou: "Não se preocupe, muita gente me conhece pelas fotos dos balões, mas não me conhece pessoalmente. Já estou acostumado". Em seguida, saiu me apresentando para seus amigos baloeiros como a pessoa que fez a antena do balão dele.

Naquele festival, nem o Eud e nem ninguém levou fotos para São Paulo. Só tenho guardadas na lembrança as imagens daquele final de semana. Encontrei o Eud em São Paulo em mais algumas solturas e ele sempre fez questão de demonstrar a gratidão pela ajuda prestada no Rio de janeiro, me apresentando a outros baloeiros e elogiando o trabalho. Pouco tempo depois soltar balões se tornou uma contravenção e eu parei completamente de frequentar as solturas e a atividade. Conservei alguns poucos amigos daqueles tempos. Em 1998 soltar balões foi criminalizado. O Baranauskas e o Eud não estão mais entre nós.

Moral da história: se em vez de eu ir para o Clube dos Aliados naquele final de semana, eu tivesse jogado na Mega Sena, talvez eu estivesse escrevendo esse texto lá de Paris!!!